A confiança e seus contornos

Do ponto de vista de sua expressão ética, a confiança é o terreno moral que, partindo de nossa intimidade, se estende até circundar o que forma o conjunto de nosso ser. Assim, o espírito, a alma, a mente e o corpo se acham penetrados na essência moral que constitui o fundo característico de toda individualidade.

Temperando o ânimo na experiência e aquilatando os valores da inteligência em inequívocas atuações, consegue-se a confiança em si mesmo. Deve-se perceber com rigorosa nitidez a própria maneira de ser e adequar o conhecimento às exigências do esforço. Em poucas palavras: deve-se alcançar em grau máximo a certeza de se sentir capaz em relação ao que se pode fazer.

A confiança em si mesmo tem de significar a prova de uma justa avaliação; o culto às condições e à capacidade, sem cair na egolatria nociva.

A confiança que inspira a amizade sincera, similar à da família, fundamenta-se na reciprocidade do afeto e do conhecimento pessoal. Desde o simples conhecido até o amigo verdadeiro, existe uma escala de graus no vínculo que os aproxima, vínculo suscetível de alterar-se por qualquer motivo, enquanto não se manifeste o apreço e a consideração como uma afirmação do conceito mútuo.

A confiança é produto da garantia moral que cada um se outorgue

Os abusos que se faz da confiança

O ruim é quando se desvirtua ou se desnaturaliza o conteúdo nobre e sadio de tudo quanto a palavra confiança encerra. Daí surgem abusos que tanto afetam o decoro e a integridade humana, além dos prejuízos que costumam ocasionar por rigorosa consequência.

É muito comum observar a quantidade de pessoas que, sem consideração alguma, tomam uma confiança que muito longe estava de lhes ser concedida. Não deixa de ser este um curioso aspecto da psicologia humana. Nos seres de escassa cultura ou instrução, geralmente se percebe essa tendência, provocando, em muitas circunstâncias, incidentes desagradáveis. Também encontramos casos em que se comete um abuso de confiança porque se deu oportunidade para isso.

Exemplo: relação entre colegas de trabalho

O mesmo costuma acontecer entre duas pessoas de posições diferentes, quando o superior, em determinadas ocasiões e num gesto de camaradagem, permite uma maior intimidade, confundindo sua hierarquia com a do subordinado, e o faz de boa-fé, o que não dá a este o direito de fazer uso dessa confiança eventual que lhe foi concedida.

Para o inferior, o de maior hierarquia deve ser sempre tido como tal; o respeito e a consideração deverão permanecer fiéis nele, se não quiser que o superior retire a confiança que lhe havia dispensado, pois é bem sabido que o fato de tomá-la implica invadir a autoridade daquele de quem ela depende, provocando a consequente reação.

Ao contrário disso, quando o subordinado se comporta corretamente, sabendo guardar distância e mantendo firme o conceito que seu superior deve merecer dele, é logo recompensado na amplitude das atribuições que lhe são dadas e no aumento da confiança que lhe é dispensada.

Há pessoas que costumam dar confiança com aparente amplitude para obter, em retribuição, a de seu próximo. Por trás de semelhante prodigalidade costumam esconder-se terríveis intenções, e os que aceitam tal temperamento, admitindo uma confiança que é alheia à idiossincrasia de quem a prodigaliza, correm o perigo de ser surpreendidos com exigências que nem sempre é possível atender. Mais ainda, às vezes acontece que, ingenuamente, caem nas armadilhas de situações embaraçosas, das quais com muita dificuldade e não poucos desgostos conseguem escapar.

Exemplo: o brincalhão

É indubitável que a variedade de aspectos que surgem, ao se aprofundar este estudo sobre a confiança em suas formas éticas, é sumamente interessante.

Assim o vemos quando aparece, por exemplo, nos lábios do brincalhão que, excedendo-se no tom e sem o cuidado de observar os efeitos que produz no ânimo de seus semelhantes, vê que pouco a pouco passa a ser recebido com prevenção no seio de suas amizades, quando não é excluído por completo. Essa classe de brincalhões fere a sensibilidade e incomoda o pudor comum.

Quão grata é para o espírito a brincadeira feita com elevação, delicadeza e com propósito nobre pois ameniza o ambiente e converte as reuniões numa atraente recreação espiritual. A brincadeira elevada, gentil e sadia, é aceita por todos; mais ainda, é buscada e apreciada. Esta é a que deve ser cultivada com prudência, selecionando os temas que lhe servirão de motivo.

O cuidado com as próprias atuações favorece a convivência

Quão necessário é que o homem seja circunspecto e fino em suas atuações, para que elas sejam felizes e não desditosas; e quão necessário é também que seja cauto e rigoroso nesses meios de observação e realização da própria cultura, para não ter que sofrer lamentáveis imprevisões que redundem em prejuízo de seu conceito, ao não saber comportar-se na vida de relação, na sociedade à qual pertence e que frequenta.

Eis aí outro aspecto da confiança que a Logosofia utiliza para revelar deficiências e apontar uma conduta que enalteça e honre o ser, sendo uma garantia de convivência harmoniosa e agradável.

A confiança que um povo outorga a seu mandatário, ao centralizar em um a vontade de todos, é uma prova de moral pública; mas, se ela é defraudada, a própria moral reage, e o usurpador perde a confiança de seu povo.

Adicionaremos que a confiança, do ponto de vista de sua expressão ética, deve constituir o fundamento de toda organização moral, política e social.

Extraído da Coletânea da Revista Logosofia – Tomo 2, p.51

Coletânea da Revista Logosofia – Tomo II

Coletânea da Revista Logosofia – Tomo II

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Carlos Bernardo González Pecotche, também conhecido pelo pseudônimo Raumsol, foi um pensador e humanista argentino, criador da Fundação Logosófica e da Logosofia, ciência por ela difundida. Nasceu em Buenos Aires, em 11 de agosto de 1901 e faleceu em 4 de abril de 1963. Autor de uma vasta bibliografia, pronunciou também inúmeras conferências e aulas. Demonstra sua técnica pedagógica excepcional por meio do método original da Logosofia, que ensina a desvendar os grandes enigmas da vida humana e universal. O legado de sua obra abre o caminho para uma nova cultura e o advento de uma nova civilização que ele denominou “civilização do espírito”.