Há alguns anos, presenciei uma cena que me fez refletir sobre a decadência da cultura vigente. Eu voltava para casa após um dia de trabalho quando, logo à minha frente, ocorreu um pequeno acidente de trânsito. “Normal”, pensei eu, vendo aquilo como algo corriqueiro no dia a dia de uma cidade com trânsito intenso. Porém, o que sucedeu em seguida foi impressionante. A pessoa que sofreu o choque na traseira saiu do carro e foi em direção ao outro veículo, estilhaçando o vidro do motorista sem titubear. Atrás daquele vidro, havia uma pessoa idosa, visivelmente abalada com a violência sofrida.
A vítima do acidente, dominada por uma espécie de cegueira psicológica no acesso de fúria, subitamente vacilou ao encarar o rosto da idosa. Dando um passo atrás, ela se afastou “pisando duro”, sem trocar uma palavra sequer para resolver o imbróglio do qual era vítima. Em vez disso, devido ao descontrole emocional, ela passou de vítima a malfeitor.
Essa vivência poderia ter passado despercebida, e eu seguiria meu caminho indiferente ao ocorrido, pensando que “a vida é assim, cada um com seus problemas”.No entanto, a Logosofia me ensinou que devo ser consciente de cada momento da vida. Ainda impressionado pela imagem que persistia em minha mente, pude refletir, a caminho de casa, sobre o que eu poderia aprender com aquela situação.
Ao chegar em casa, ainda um pouco agitado, mas já mais bem disposto, pude seguir a disciplina da anotação pessoal recomendada pelo método logosófico como indispensável para o aperfeiçoamento pessoal e a evolução consciente. Comecei a escrever, tentando entender o que poderia ter se passado no interior daqueles indivíduos. E, mais ainda, se eu estivesse naquela situação, como me comportaria? Quais seriam minhas reações e pensamentos?
Realizei o exercício de me colocar na perspectiva do motorista vítima do acidente, e não foi difícil identificar o pensamento que lhe dominou a mente. Veja o que diz González Pecotche em seu livro Deficiências e Propensões do Ser Humano sobre a irritabilidade:
Ficou claro que algum pensamento de irritabilidade passou pela mente daquele ser e fez seu estrago. Com um pouco de boa vontade, poderia até reconstituir o que esse pensamento rasteiro pode ter lhe sugerido ao pé do ouvido: “Ah! Você sofreu um dano material no seu automóvel! Vai lhe custar tempo e dinheiro para reparar isso, devido à desatenção do outro. Portanto, é seu direito retribuir na mesma moeda e causar-lhe o mesmo dano”. Esse movimento mental pode ter ocorrido numa fração de segundo, mas também é verdade que ele não foi criado naquele instante. Ele já estava lá, dentro do indivíduo, à espreita, esperando a situação oportuna para se manifestar, disfarçado como um “direito de defesa”. Segundo González Pecotche, embora seja inerente à natureza humana ter defeitos, o ser humano é o único ser na Criação que pode mudar por sua própria determinação. Através do conhecimento, é possível identificar, debilitar, anular até eliminar esses pensamentos que ele chama de deficiências psicológicas, opondo-lhes o que se chama de antideficiência. Continuando a reflexão sobre a irritabilidade:
A partir desse estudo inicial, pude formular uma compreensão básica e princípios para que eu pudesse atuar melhor em situações futuras. Reconheci que alguns pensamentos que observei no outro também estão dentro de mim, incluindo a irritabilidade. Além disso, entendi que, uma vez reconhecidos, é possível antecipar a ação negativa desse pensamento. A Logosofia chama esse recurso de “pensamento pensado”. Se eu sei que posso estar exposto a contratempos do dia a dia, faria bem em ter clara e antecipadamente a solução para eles pronta na mente, até com um “passo a passo” para resolvê-los. Por exemplo: “Respira fundo, pega os dados, tire fotos, aciona o seguro, faz um boletim de ocorrência etc.
Com isso em mente, pensei em como cultivar a temperança, que poderia servir como recurso imediato para acalmar a mente no calor do momento. Isso faz parte da arte da defesa mental . E compartilho um desses recursos que recebi de uma amiga: “Calma, as pessoas são mais importantes que as coisas”.
Aprofundando o estudo do episódio além de sua solução prática, pude identificar outros movimentos mentais que transcendem o episódio em si e que, à primeira vista, estavam ocultos para mim.
Um deles foi que a vítima do acidente, logo após o vidro se estilhaçar, foi confrontada com a perspectiva do outro, percebendo o impacto de sua ira na fisionomia da pessoa afetada. Teria visto ali, como num espelho, o fragmento de imperfeição que perturbava seu estado interno – a irritabilidade? A visão de sua autoimagem deformada foi o que o fez vacilar? O que foi esse algo que o fez parar, olhar para si mesmo e recuperar um traço de humanidade que havia desaparecido segundos antes, permitindo-lhe enxergar que estava errado? Haveria alguma reserva moral oculta ou seria o próprio espírito humano protegendo-o de dar um passo além do vidro, que poderia trazer consequências irreversíveis para o encaminhamento de sua alma?
Séculos de evolução civilizacional nos legaram códigos e leis que oferecem maneiras mais racionais e pacíficas de resolvermos as tensões e fricções que acontecem nas relações humanas. Entretanto, ainda sobrevive dentro de cada um de nós o instinto primitivo de defender-se usando a violência física. Se permitimos que essa tendência instintiva atue livremente, sem a intervenção da razão, rapidamente as relações humanas retrocederão às épocas em que o código ético era o do “olho por olho, dente por dente”. Nos dias de hoje, o que ainda nos falta para que possamos aprender a resolver nossos problemas não mais com a violência do instinto, conduta indistinguível do reino animal, mas sim com a força da inteligência, prerrogativa fundamental do ser humano? Os avanços alcançados pela ciência e tecnologia permitiram melhorar a vida em sociedade, mas parecem tê-los feito apenas “por fora”, pois, como mostrou o episódio do acidente, a cultura vigente não conseguiu transmitir os conhecimentos necessários que permitam uma evolução de valores e virtudes internos.
Diante desse panorama é que González Pecotche, em seu livro Curso de Iniciação Logosófica, fala sobre a decadência da atual cultura:
Refletindo sobre os acontecimentos que presenciei como sintoma da decadência da cultura atual e sua causa, acrescentei algumas compreensões sobre este meu estudo:
- Compreendo que conhecer a mim mesmo implica domínio do meu próprio campo mental e dos meus pensamentos, incluindo a criação de novos que possam me defender das perturbações e da degradação moral vigente, causada por grandes correntes de pensamentos;
- Reconheço que estou no mundo onde imperam os pensamentos e, se já comprovei que não conheço nem meus próprios pensamentos na totalidade, posso ser presa fácil de pensamentos alheios, como modas, tendências e convenções sociais tidas como o “novo normal” para aquela época, mas que podem não ser normais para toda a vida, além de crenças e tradições desgastadas que se contrapõem à lógica mais evidente aos olhos do meu entendimento;
- Comprovei ao longo da minha vida que existem Leis que determinam uma organização inteligente no universo, e que são superiores às que eu poderia conceber ou sequer imaginar. Se há uma Criação, é lógico que deva haver um Criador, sendo inteligente conhecer e respeitar Sua Vontade, assim como respeito as leis criadas pelos homens para viver em paz na sociedade.
Depende de mim buscar essa formação que não me foi ensinada. A Logosofia veio para suprir essa lacuna e tem permitido que eu seja mais consciente e que uma conduta honrosa e digna de um ser humano seja minha maior oração. Reconhecendo o bem nisso, compartilho o bem recebido, buscando ser exemplo e inspiração para os demais. Cabe a mim, como parte da geração do presente, permitir que as gerações do futuro mantenham a esperança de que poderão viver em um mundo mais humano e pacífico do que o atual.