Quando pequena, costumava assistir a um desenho animado em que sempre havia pendurada, na parede da casa dos personagens, uma plaquinha com a célebre frase “lar, doce lar”. Era pitoresco, e os dizeres traduziam algo que todos compreendem facilmente: o aconchego e a segurança de estar em um lugar seu, que lhe oferece prazer e paz. Sabemos todos que o lar vai além da parte físico-estrutural de uma construção. Ao pensarmos em um lar, nós nos abstraímos dos tijolos e do cimento para recorrermos mentalmente a um arquétipo mais sublime, impregnado de intimidade e afeto.
Entretanto, se é assim, por que muitos não se sentem em casa na própria casa?
A casa onde se mora é sempre um lar?
Como construir um lar? Como gostar do seu próprio lar? Como conciliar e preservar a intimidade do lar ao mesmo tempo que se recebe ali outros seres, ainda que muito queridos?
Nossas casas não são apenas um local para pouso, onde nos recolhemos para o descanso físico. Se em viagem de passeio nos hospedamos em um lugar pleno de comodidades e conforto, por vezes com requintes, ainda assim não ansiamos, após um período, retornarmos aos nossos lares?
Posso entender que o corpo humano é um albergue para a parte espiritual?
O ser humano, que não é formado apenas de matéria física, tem o poder de se transformar a fim de estar bem consigo mesmo? Os franceses possuem uma expressão que sempre me inquietou e me agrada muito até hoje: être bien dans sa peau. Essa expressão indica estar bem dentro da sua pele, estar bem consigo mesmo. É uma concepção muito sensível e que pode nos remeter a alguns elementos mais transcendentes.
González Pecotche, em uma Conferência que trata da vida interna¹, nos ensina que devemos cuidar da nossa casa como se estivéssemos em lar alheio.
O que quis ele dizer com isso? Ali o autor, em uma imagem para nos fazer refletir sobre a vida interna, afirma que muitos seres não desfrutam verdadeiramente de suas casas; ao contrário, preferem as casas alheias, de amigos ou parentes, as admiram e elogiam, e não sentem grande bem-estar em seus próprios lares. Recomenda o autor que apreciemos as comodidades que nossos lares possuem, o gosto com que as coisas são arrumadas, e um novo dono terá então posse dessa casa, um dono com um olhar diferente, que valoriza. Daremos então, assim, adeus ao fastio e à indiferença!
Quem sabe não podemos fazer o caminho reverso, cultivando, além de nossos lares, também o nosso mundo interno?
A vida interna abrange a mental e a sensível, ou seja, a vida psicológica assim entendida. Para vivê-la é necessário preservá-la de qualquer interferência externa ou estranha. A atenção que nos exige o fato de vivermos nossa vida internamente não impede, em absoluto, nossa vida de relação com os demais; pelo contrário, ela assumirá uma maior consciência ².
Esse convite para se autoconhecer passa invariavelmente pelo conhecimento do mundo próprio. Pode entrar, a casa é sua!
Rumo à Vida Interna, in Introdução ao Conhecimento Logosófico. Para download: https://logosofia.org.br/livros-e-artigos-do-autor/ , pag.367 e seguintes.
Rumo à Vida Interna, in Introdução ao Conhecimento Logosófico. Para download: https://logosofia.org.br/livros-e-artigos-do-autor/ , pag.373.