Final da década de 80, um garoto negro de dez anos brincando na rua na Zona Norte do Rio de Janeiro. Era uma rua sem saída, em frente da casa da avó, chamada carinhosamente de morrinho, pois ficava em um plano mais elevado.

Naquele dia não havia muitas crianças e ele estava brincando sozinho, quando uma senhora, já idosa, aparentando 70 anos, desceu de um carro com bolsas de supermercado. Ela estava sozinha e apesar de chegar com poucas bolsas, apresentava dificuldade em carregar todas elas, principalmente para descer as escadas em direção ao bloco do seu apartamento. A dificuldade dela tocou a sensibilidade do menino e ele decidiu ajudá-la, com o maior sentido altruísta. Assim o garoto se aproximou e perguntou se ela queria ajuda. Ela sorriu e aceitou prontamente. Ele pegou três sacolas, que não estavam pesadas para ele. Duas sacolas ficaram com ela. Desceram as escadas juntos e depois entraram no prédio. Não havia elevador e eles subiram dois andares de escada para chegar na porta do apartamento dela.

Ao chegar lá, o garoto acreditou que a missão estava cumprida. Ela entrou e foi colocando as sacolas dentro do apartamento. Como ela não falava nada, o menino esperou. Como criança não é de esperar muito, ele logo começou a despedir-se. Ela falou finalmente para ele esperar. Ele ficou curioso e esperou. Ela foi até a bolsa, catou uma moeda e estendeu a mão. O valor corresponderia a 50 centavos atuais. Ele olhou aquilo, refletiu e pensou que o sentimento que fez ajudá-la não tinha preço e, além de tudo, ele não precisava de nenhum dinheiro.

Para o menino, existia uma explicação para aquela ação da senhora. O prédio dela era um conjunto habitacional idealizado na época de Getúlio Vargas. Não era um prédio novo, mas naquela época apenas a classe média morava lá. Entretanto, existia uma favela próxima do conjunto e, eventualmente, algumas crianças desciam para brincar naquela charmosa rua sem saída. Era comum naquele tempo garotos e adolescentes negros ficarem na porta dos mercados oferecendo ajuda, normalmente para senhoras brancas de classe média. Na década de 80 existiam pouquíssimas famílias negras de classe média, e, portanto, era lógico que o menino pensasse assim.

A reação do menino surpreendeu a senhora. O menino recusou o dinheiro! Ele sabia de todos esses fatos e entendeu rapidamente que ela o confundiu com um morador da favela. Ele pensou: “ela estava precisando de ajuda, mas ao invés da gratidão quer dar esmola e nem é um valor compatível com a ajuda”. Ela não entendeu e ficou inconformada. Ofereceu uma segunda moeda, provavelmente achando que o garoto estivesse barganhando. Ao ver a expressão de contrariedade e incompreensão da senhora, o menino resolveu explicar o que de fato estava acontecendo. Falou que estava na casa da avó, vizinha dela no bloco ao lado e não precisava de dinheiro. Resolveu ajudá-la apenas porque viu a necessidade dela, mas sem nenhum interesse.

Após as palavras do garoto a senhora ficou muito constrangida, sem saber o que dizer. Ela não tinha mais o que fazer para consertar a situação. O preconceito estava descoberto. Mas foi nesse momento, de maior incomodo, que ela fez um gesto correto. Abraçou o menino e agradeceu. Nesse momento, o garoto ficou feliz porque ensinou àquela idosa que o preconceito pode levar a grandes erros e, principalmente, que um gesto verdadeiro da sensibilidade, como o altruísmo e a gratidão, não tem preço.

Esse acontecimento está gravado na mente do menino pois leva a outro ensinamento: a humildade. Um dia ele poderá ser um senhor e estar à sua frente um jovem capaz de ensiná-lo algo importante.

A sensibilidade segundo a logosofia

A Logosofia ensina que a sensibilidade é parte fundamental do indivíduo e através dela podemos agir da melhor forma possível, exercitando as grandes virtudes do ser humano como o altruísmo e a humildade. Os preconceitos são pensamentos cristalizados na mente que impedem ver a realidade e nos afastam das virtudes humanas.

Podemos aprender com as nossas recordações. Todas as recordações vivas da infância são uma ótima fonte de aprendizado. Ensinamentos extraídos da nossa própria experiência, transformam o valor do passado e do presente e possibilitam criar um futuro melhor.