Certa vez, ao assistir a um documentário, deparei-me com o testemunho de um senhor, que jamais pude esquecer. Tratava-se de um sobrevivente de guerra, já bastante idoso, relatando como escapara da morte certa após ser capturado pelas linhas inimigas. Vou tentar reproduzir seu relato a seguir.
O oficial adversário, posicionando-se à frente de uma fileira com dezenas de aprisionados, indagou, com voz fria e cruel, quem dentre eles possuía a destreza de manejar o violino. Em troca, caso a música lhe agradasse, ofereceria um pouco de água e comida. Dois prisioneiros, esfomeados e enfraquecidos, ofereceram-se; o segundo deles, o autor do relato desse documentário. O primeiro começou a executar esplendidamente uma peça qualquer. No entanto, o comandante, descontente com a escolha musical, ordenou sumariamente a execução do infortunado violinista. O protagonista, então, empunhando o violino ainda manchado pelo sangue da recente tragédia, começou a tocar, com as mãos trêmulas, a primeira melodia que invadiu sua mente: a belíssima valsa “Danúbio Azul”, de Strauss. Surpreendentemente, o oficial pareceu deleitar-se com a melodia, até mesmo marcando o ritmo com um pé batendo no solo. Naquele momento, o violinista sentiu que poderia tocar qualquer coisa, pois não corria mais perigo. Havia conquistado o oficial. Esse foi apenas um dos muitos obstáculos que enfrentou para escapar daquela terrível experiência.
Mas o mais notável de tudo foi que, segundo o próprio relato do sobrevivente, até aquele ponto crucial, ele jamais aprendera a executar “Danúbio Azul” e nem sabia explicar como conseguira interpretá-la tão perfeitamente em meio a uma situação tão desesperadora.
Independentemente da veracidade desse relato, estou certo de que você, caro leitor, encontrará, dentro do acervo de suas experiências pessoais, situações semelhantes à relatada, ainda que provavelmente não tão dramáticas. São momentos em que agimos com o que comumente se chama de “presença de espírito”.
Essa expressão, embora popular, é incrivelmente precisa. A meu ver, foi justamente o espírito desse homem que, presente naquele momento crucial, prestou-lhe tão inestimável auxílio.
Mas, o que entendemos por espírito? A Logosofia convida-nos a realizar uma profunda revisão de conceitos. De modo geral, algumas correntes religiosas ou místicas acreditam que, quando morremos, “viramos” espíritos. Recordo-me do popularíssimo filme Ghost – Do Outro Lado da Vida, que marcou a adolescência daqueles que, como eu, já ultrapassaram as primeiras quatro décadas de vida. Nele, o protagonista morre, “vira” um espírito e, apesar de sua imaterialidade, continua habitando o mundo dos vivos, sendo capaz de atravessar paredes, embora, curiosamente, seja incapaz de fazer o mesmo com o chão que parece sustentá-lo sem problema algum.
Ao revisar o conceito de espírito sob a luz dos conhecimentos logosóficos, descobri que está ao meu alcance comprovar a existência do meu espírito ainda em vida. Explicar exatamente o que é o espírito não é fácil, por dois motivos: primeiro, porque sua natureza é incorpórea e extremamente sutil; segundo, porque as constatações que vamos fazendo de sua realidade são intraindividuais, ou seja, a certeza só pode ser alcançada pelo indivíduo ao penetrar em seu mundo interno, da mesma forma que cada um de nós só pode ter certeza daquilo que ocorre dentro da própria mente e não da mente alheia.
O espírito é, pois, no conceito logosófico, o verdadeiro indivíduo, a centelha divina que anima o ser físico. O ser físico, já sabemos, nasce, cresce, envelhece e, cedo ou tarde, morre. Já com o espírito isto não acontece. É ele quem porta tudo aquilo que nos distingue como indivíduos: conhecimentos, aptidões, expressões fisionômicas e até mesmo a de nossa voz.
Acaso, caro leitor, você já não sentiu, diante de coisas, pessoas ou fatos vividos, algo internamente que diz “isso não pode acabar”? São momentos em que experimentamos a eternidade dentro da finitude da vida física. A própria vida parece dividir-se em duas em certos instantes: a parte passageira e a parte permanente. As satisfações que vivemos e que perduram são de sabor tão especial que não nos preocupa se iremos vivê-las de novo. A simples recordação delas já nos preenche e encanta. A alegria íntima e inefável que, como pais, sentimos quando nossos filhos nasceram é por si só um exemplo suficiente. Já as satisfações passageiras, nem bem terminam, movem-nos em busca de outras que as substituam, num apetite que não termina nunca, exatamente como o apetite que os vícios de qualquer natureza proporcionam-nos.
Se a vida termina com a morte, se o nosso espírito não sobrevive à falência do corpo, seríamos capazes de experimentar tais sensações permanentes? Se podemos realizar a proeza de trocar uma vida cheia de inconsequências e adversidades por outra nova, plena de virtudes e momentos felizes, seria justo a morte física dar um fim a esse esforço? Com que intuito vou reformar uma casa se hei de me mudar dela? Deixo-a do jeito que está. Então, para que reformar o meu ser interno, se logo este deixará de existir? O próprio impulso natural de ser melhor, de se aperfeiçoar, parece dizer-nos que nenhum esforço realizado nesse sentido será interrompido com a morte física.
A Logosofia vai ensinando-nos que nossa parte espiritual pode fazer-se mais presente em nossa vida, como quando, por exemplo, aparece de forma inesperada em nossa mente alguma ideia muito, muito boa. Ou, então, descobrimos subitamente a solução de algum problema que nos preocupava há dias. Pode acontecer também quando passamos por algum aperto ou corremos algum risco e temos de reagir rapidamente.
Em tempos em que muito se fala do Homo sapiens que, embora sábio, ignora ainda tantas coisas, é hora do advento do Homo spiritualis, o homem-espírito, aquele que não só experimenta ocasionalmente a presença de seu espírito, mas conta com o mesmo como fator preponderante em tudo o que pensa, fala e faz.