Anastásio: — O senhor poderia me apontar algo que me fizesse pensar sobre aquilo  que ainda não me tivesse ocorrido?
Preceptor: — São muitos, na verdade, os pontos que eu poderia abordar, sabendo de antemão que não constituíram preocupação nem foram motivo de cogitação alguma de sua parte. Posso satisfazê-lo facilmente. Escute. Existe um ser a quem todos, sem exceção, têm esquecido; se foi recordado uma vez ou outra, foi de forma  circunstancial, mas essa recordação fugaz não cumpre o objetivo que vou assinalar, razão pela qual me sinto movido a declarar seu geral esquecimento. Esse ser é a criança que cada um de nós foi, que nos proporcionou os melhores dias da existência e a quem, poderíamos dizer, devemos grande parte do que agora somos.
Anastásio: — É verdade. Nossa recordação projeta somente uma ou outra travessura de vez em quando, e, ainda assim, isto ocorre mais de forma involuntária. Penso que, como as idades se sucedem, os pensamentos de cada
uma delas nos fazem esquecer as anteriores.
Preceptor: — Podemos pensar, se assim você quiser, que o adulto é a continuação da criança, mas no que nunca se pensa é que a criança morre no momento em que nasce o homem. Agora, eu lhe pergunto: quais são os que recordam a criança
morta? Durante seus dias maduros, quais os que tributam a homenagem de seus sentimentos a essa criança que só vimos com os olhos da inocência? No entanto, quanto suaviza os duros transes da vida a evocação dessa terna idade, sobretudo quando devemos cruzar caminhos eivados de perigos! Quem pensa nessa criança e a contempla através de suas recordações, observando-a em suas brincadeiras, em seus pensamentos, em suas inclinações e em sua inocência, verá quanto tem a aprender com ela e quanto lhe deve; mais ainda: quanto deveria conservar daquele
pequeno ser para que hoje, grande em tamanho e em idade, lhe seja permitido pelo
menos experimentar algumas daquelas inocentes, porém gratas sensações que deram à sua vida as melhores horas. Seria bom que cada um recordasse essa criança, a que foi, a que morreu. Que a recordasse muito, porque nessa recordação vai implícito o enlace da atual existência com a que se foi, pois o esquecimento destrói não só o vínculo que as une, mas também a própria sensibilidade. São muitas as reflexões que acodem à mente quando a recordação converge para a criança; mas é necessário evocá-la com frequência, para que nos inspire coisas sobre as quais até aqui não havíamos pensado. Se esquecemos nossa própria criança, aquela que morreu, cometemos com isso, talvez sem querer, um
crime simbólico: morrerá também o jovem e, sucessivamente, o que somos ou fomos em cada idade. Assim se irá esfumando no esquecimento e, sem que a sintamos, morrerá em nós, lentamente, toda a nossa vida.


Carlos Bernardo González Pecotche, também conhecido pelo pseudônimo Raumsol, foi um pensador e humanista argentino, criador da Fundação Logosófica e da Logosofia, ciência por ela difundida. Nasceu em Buenos Aires, em 11 de agosto de 1901 e faleceu em 4 de abril de 1963. Autor de uma vasta bibliografia, pronunciou também inúmeras conferências e aulas. Demonstra sua técnica pedagógica excepcional por meio do método original da Logosofia, que ensina a desvendar os grandes enigmas da vida humana e universal. O legado de sua obra abre o caminho para uma nova cultura e o advento de uma nova civilização que ele denominou “civilização do espírito”.