Desde que a guerra atual afastou os perigos da “blitzkrieg”,* que tantas soçobras causou aos povos, e se transformou numa guerra de posições em que a inteligência militar, posta a serviço dos grandes objetivos estratégicos, busca a eliminação do inimigo pela supremacia sobre todas as armas, observa-se uma crescente inquietação por saber qual será o futuro que a nova organização, a ser estruturada pelas potências vencedoras, vai trazer para a humanidade.

Seja qual for o pensamento que anime os motivos políticos e sociais dos grandes estadistas, de cuja capacidade dependem os pronunciamentos definitivos, nós, de nossa humilde tribuna, onde são estudados com toda a amplidão de consciência os problemas que se apresentam à inteligência, especialmente nestes momentos de grandes crises em todas as ordens da vida humana, expomos nossos raciocínios, levados a efeito com base em imperativos que, segundo estimamos, formam em conjunto o quadro das perspectivas que a atual situação político-social dos povos nos oferece.

Entendemos que a extrema gravidade das horas futuras aparecerá no preciso instante em que cessarem as hostilidades, pelo estado moral e mental que, ao terminar a guerra, entrará em crise nos países mais diretamente afetados por ela; pela desorganização social, política e econômica; e pelo vazio, impreenchível no princípio, deixado por aqueles que, nesta contenda, pagaram tributo com as próprias vidas.

No afã dos homens de governo da Inglaterra e da América do Norte em encontrar os meios mais viáveis para estabelecer a pacificação e a ordem no pós-guerra, entrevemos um magnífico trabalho de alta diplomacia, manifestado no fato de colocarem sob sua égide os governos exilados e permitirem que estes vão constituindo com tempo seus Estados, de forma que, chegado o momento, possam retornar aos respectivos países e funcionar interinamente, para administrar suas nações e manter a ordem, enquanto são discutidos os termos em que haverão de condensar-se as decisões definitivas para a nova organização do mundo.

Esse ato de previsão nos tranquiliza em parte, pelas vantagens que representa para esse gigantesco labor de reconstrução geral a que haverão de dedicar-se todas as nações que integram a família humana.

É justamente nessas grandes crises da história que se apresenta a oportunidade de poder realizar os também grandes reajustes da velha organização, cujas deficiências provieram não precisamente dela, mas dos homens que estiveram à sua frente.

Será preciso, pois, buscar o mal em suas raízes mais profundas e, em vez de combatê-lo com os chamados remédios heroicos, que na maioria das vezes são só calmantes, deverá ser usado, primeiramente, o grande antídoto que neutralize os efeitos dos envenenamentos da mente, do instinto – e, por conseguinte, morais -, para em seguida culminar com o triunfo do bem, que, por não haver lançado novas raízes na humanidade, tantas lágrimas lhe custou.

Em nossa edição anterior, ao falarmos dos movimentos estratégicos da guerra atual, manifestamos nossa convicção de que os estadistas aliados se achavam profundamente ocupados não só em estabelecer uma ordem de equidade superior à que existia antes do começo deste conflito, mas também em planejar o estabelecimento de uma paz que, conquistada com tanto sacrifício, se apoie em bases sólidas e indestrutíveis.

A conferência histórica que foi realizada nos últimos dias do mês passado** pelos grandes líderes da democracia e atuais condutores dos povos que lutam pela liberdade, Roosevelt e Churchill, e à qual assistiram tão altos e preeminentes chefes das forças armadas dos países aliados, confirma uma vez mais o acerto de nossas observações.

Nesse memorável encontro, os dois homens de Estado convieram em derrotar o inimigo dentro de um curto prazo, que no máximo ultrapassasse em muito pouco os limites do ano em curso.

Tanta premência em terminar a guerra se deve, indubitavelmente, ao fato de já estarem concluídos os planos de ação bélica a se desenvolverem nos dias futuros e também os que, necessariamente, foram traçados para a organização da paz e do pós-guerra. Não foi em vão que se disse não terem precedente os estudos realizados durante as conversações que mantiveram as duas figuras que absorvem atualmente a atenção do mundo. É, pois, inquestionável a transcendência do dito encontro, no qual estava representada em dois homens a vontade de duas potências e, também, simbolicamente, a do mundo inteiro.

Ainda que nada tenha sido noticiado até aqui a respeito dos dois planos referidos, devido à lógica reserva exigida nos momentos atuais, vamos deixar o primeiro, relacionado com a estratégia militar dos movimentos bélicos a serem efetuados, para nos ocupar do que se refere à futura organização do mundo.

Ninguém poderá deixar de compreender o grande número, a variedade e a importância dos problemas que haverão de se apresentar à medida que as situações dos povos sejam encaradas dentro da realidade de cada um. O que evidentemente contribuirá para atenuar bastante, pelo menos durante o primeiro tempo do estabelecimento da paz, a magna e difícil tarefa da futura organização será, sem dúvida, o fato de milhões de seres, que hoje vivem angustiados, estarem suportando mil penúrias, unidos por uma resignação comum que lhes permite suportar a vida em meio à miséria e aos sofrimentos morais mais espantosos.

O imenso anelo de todos esses seres não pode ser outro, nos momentos atuais, que o de voltar à normalidade e, ao experimentarem tais ânsias – que diremos serem de reivindicação da alma humana e de restituição de seus direitos à vida normal -, admitirão sem maiores exigências tudo quanto seja feito visando a encaminhar a humanidade pelos caminhos do progresso, do bem e da evolução, dos quais se afastou por comportamentos que a conduziram a experimentar os transes tão amargos e delicadíssimos que hoje deve sofrer, como consequência desse desvio.

Ficará entendido, assim, que tudo quanto se faça ao finalizar a guerra, seja pouco ou muito, em favor do indivíduo e da sociedade, sempre haverá de ser imensamente melhor para os que hoje vivem sob o império da violência e das situações instáveis, privados até de desfrutar as míseras condições em que, antes de começar o conflito bélico, se achavam os mais desamparados.

A guerra total evidencia, com meridiana clareza, ser o último ensaio das potências militaristas que pretendem a dominação do mundo. E, se bem que a princípio parecesse, diante dos acontecimentos inesperados, ser essa uma empresa factível, tal impressão não tardou muito a se desvanecer ante a reação posta de manifesto, com tamanha virilidade, pelos povos que resistiram a aceitar esse aventureiro sonho de conquista que os teria mergulhado na escravidão.

Se ressaltamos isso, tendo-o como algo de importância muito fundamental, é porque se deve pensar que a uma guerra total tem de suceder uma paz total. Consideramos, assim, que, se as bombas explosivas alcançaram todos os lares e todos os rincões, ainda que neles se abrigassem anciãos, mulheres, crianças ou inválidos, também os benefícios da paz futura devem chegar a todos esses lares e a esses rincões. Porém, como as coisas não podem ser feitas ao sabor do acaso, a fim de não serem destinadas ao fracasso, pensamos que será necessário contemplar as questões e os problemas em suas verdadeiras raízes.

Deve existir um equilíbrio de convivência, um equilíbrio de compreensão entre o indivíduo e a sociedade. Entendemos que o individualismo deve evoluir até sua máxima expressão, propiciando o encontro conciliatório com o coletivismo, e este, do mesmo modo, ir ao encontro do individualismo, sem absorvê-lo nem pretender privá-lo de seus direitos, prerrogativas e liberdade de produção. Se as funções sociais do indivíduo devem tender ao melhoramento da coletividade, as funções desta hão de tender ao melhoramento de cada um dos seus membros, uma vez que cada um, individualmente, tem fisionomia própria, e, na soma de seus valores e qualidades, deve estar presente, mediante a livre expressão de seus pensamentos e de sua ação, seu melhor aporte à sociedade.

Dessa forma se conciliariam pontos de vista antagônicos, ou que estejam em pugna por incompreensão ou desconhecimento dos princípios que determinam o conteúdo da existência humana, e também se evitariam lutas estéreis, ideológicas e políticas, que, como já vimos, depois de semear a confusão, levaram os homens a incompreensões de toda índole, tornando-se depois necessário, para calá-las, recorrer à violência das armas.

Nos estudos profundos que estamos realizando, enfocamos precisamente esses pontos fundamentais, que tanto haverão de pesar na balança dos problemas futuros, e pensamos que, do que ficou dito nesta clara exposição de nosso pensamento, poderão ser extraídas não poucas conclusões, dado o alcance que tem, nestas horas, toda contribuição com intenções sinceras e de exclusiva colaboração para a elucidação e solução dos problemas que afetam o mundo e, portanto, toda a humanidade.

E é desse modo que consideramos concludente a afirmação de que uma guerra total deve ser seguida por uma paz total, querendo com isso dizer que, se para a organização da guerra foi preciso preparar os homens desde a infância, para enfrentar as necessidades da paz também será preciso ir diretamente à alma da criança e do adolescente, a fim de formar homens para a defesa dessa paz.

Para isso, será necessário coordenar um grande plano de educação superior, que permita uma verdadeira e sólida evolução na infância e na juventude, transformando-a em evolução consciente para os homens do futuro, tal como o ensinamento logosófico vem preconizando e demonstrando com fundamentais verdades.

* N.T.: “Guerra-relâmpago”, tática muito usada pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial, com emprego combinado, maciço e rápido de homens, carros blindados e aviões.
** N.T.: Este artigo foi publicado em fevereiro de 1943.
Extraído de Coletânea da Revista Logosofia – Tomo 1, p.63

Coletânea da Revista Logosofia – Tomo I

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Carlos Bernardo González Pecotche, também conhecido pelo pseudônimo Raumsol, foi um pensador e humanista argentino, criador da Fundação Logosófica e da Logosofia, ciência por ela difundida. Nasceu em Buenos Aires, em 11 de agosto de 1901 e faleceu em 4 de abril de 1963. Autor de uma vasta bibliografia, pronunciou também inúmeras conferências e aulas. Demonstra sua técnica pedagógica excepcional por meio do método original da Logosofia, que ensina a desvendar os grandes enigmas da vida humana e universal. O legado de sua obra abre o caminho para uma nova cultura e o advento de uma nova civilização que ele denominou “civilização do espírito”.